quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O aviãozinho de papel

Após um longo período de abandono, volto a postar no blog. Vou tentar trabalhá-lo com mais regularidade nos meus tempos livres, que cada vez são menos. Há muito para contar e mostrar nestes meses que se passaram. Aliás, muito mais, se fizer uma viagem ainda mais para trás em direcção ao passado. A seu tempo. 2007 foi um dos anos que vivi mais intensamente, calcorreando caminhos de terra e caminhos de alma. Muita coisa mudou desde Maio. Em Julho voltei para Portugal (não sem antes ter feito mais uma das minhas viagens por países de Leste e à Noruega profunda), passei uma semana como tripulante de um veleiro por mares da Dinamarca, a viagem de regresso foi uma viagem non-stop de carro atravessando a Europa desde Maasholm, num dos extremos da Alemanha, e depois gozei dumas merecidas férias por terras algarvias.

De momento, trabalho como professor em Albufeira, dou explicações num centro de explicações e em Novembro e Dezembro estive na Fnac do Algarve Shopping (passo a publicidade) a trabalhar como vendedor/promotor de vendas de uma colecção de livros personalizados intitulada: "O herói sou eu", a qual já são capazes de ter ouvido falar, pois foi amplamente divulgada pela comunicação social. São cinco histórias (sete, se dessas cinco incluirmos duas disponíveis também em inglês) da autoria de Maria João Lopo de Carvalho, que têm o condão de fazer das crianças heróis de palmo e meio sempre que as páginas dos livros sejam folheadas. Um conceito interessante em que os livros são criados na hora, bastando para tal que o cliente forneça alguns dados que são editados e depois fornecem um cunho individual às crianças a quem os livros são oferecidos. Como me considero uma pessoa criativa, adorei esta oportunidade (apesar de ser imensamente mal pago!) de poder fazer livros e abordar potenciais clientes (só custa mais ao princípio), inserir dados, imprimir, colar, dobrar, agrafar, etiquetar, até finalmente se chegar à versão final em que o livro é entregue nas mãos do cliente. Saber fazer livros e não tão somente escrevê-los, uma condição sine qua non, que interiorizei, caso algum dia me aventure a publicar algo de minha autoria. Algo que considero essencial. Para escrever um livro, são precisas muito mais que meras palavras. Muitos escritores avulso da nossa praça escrevem e escrevem, sem que haja essa comunhão empática com o livro, sem esse entendimento umbilical surdo-mudo e por isso, frequentemente, os resultados, não são famosos.

Ora como o meu turno na Fnac era o turno das manhãs (7 dias por semana), e muitas vezes a essa hora eram mais os empregados que se passeavam pela Fnac do que os clientes, acabei por criar nas horas mortas, uma série de histórias infantis por lá, e assim acabei por dar o tempo por mais bem empregue. A história que se segue foi a primeira delas, num total de quatro. Uma história simples, pois ainda nunca tinha feito nada no género.

O aviãozinho de papel

Estava um belo dia de sol. Como é normal, em Agosto.Tão bom estava o dia, que o Miguel resolveu ir para a rua brincar, pois aborrecia-se imenso em casa. Ele adorava brincar. E durante as férias de Verão, tinha todo o tempo do mundo para fazê-lo. Correu a tocar às campainhas dos amigos que moravam na mesma rua, e em três tempos, o grupo estava formado.
Eram cinco, no total. O Miguel, o Vasco, que era o seu melhor amigo, o António e o Paulo, irmãos que moravam num prédio em frente ao seu, e o Ângelo, de quem ainda era primo afastado e que morava ao fundo da rua.
Foram todos para um parque enorme que ficava a cinco minutos de distância, contando piadas pelo caminho. No meio do parque existia um enorme lago, onde os patos ensurdeciam quem passava com os seus quá-quás estridentes. À roda deste, algumas árvores davam preciosas sombras.
Eram três da tarde e o sol estava mesmo a pique. Sentaram-se todos à sombra da maior das árvores que circundava o lago a decidir ao que iriam brincar.
- Vamos jogar às escondidas, disse o Vasco.
- De acordo, repetiram os outros em coro. Mas tão alto, tão alto, que por um instante, os próprios patos se silenciaram.
Calhou ao António ser ele a procurar pelos restantes.
- Um, dois, três, quatro...
E assim prosseguiu até chegar aos cinquenta, acelerando perto do fim, para ver se apanhava algum amigo distraído.
O Ângelo foi o primeiro a encontrar onde se esconder. Foi-se colocar por trás de uma banca de gelados e ali aguardou pelo final da contagem.
O Paulo e o Vasco esconderam-se dentro da casa-de-banho do parque, à qual se chegava através de um estreita vereda em terra batida.
O Miguel foi o último a encontrar esconderijo. Vejam lá se conseguem adivinhar onde se foi esconder. Pois não é que ele pulou a cerca e se enfiou na casota dos patos, onde eles se abrigam à noite?
Dentro da casota estava escuro. Muito escuro. A custo, lá se encolheu a um dos cantos e pôs-se a ver se escutava alguma coisa vinda do exterior.
Entretanto, o António já terminara a contagem e caminhava na direcção da banca de gelados.
Nessa mesma altura, o Ângelo resolveu, imprudentemente, espreitar para ver onde estava o António. Foi logo descoberto. E foi numa correria desenfreada que os dois prosseguiram até à árvore onde o António fizera a contagem. Este chegou primeiro, mas por pouco. O Ângelo recuperara terreno e vinha já a morder-lhe os calcanhares.
- Foste apanhado. Estás fora do jogo, disse o António.
- Vou ver dos outros. Viste para que lado foram?
- Nem penses que te digo alguma coisa, mas não podem ter ido muito longe. Tu contaste tão depressa.
Nesse momento, o Miguel estava curiosíssimo com o que se passava lá fora. Já teria sido alguém apanhado? Não conseguia escutar nada por causa do grasnar dos patos. E na penumbra da casota, dificilmente conseguia vislumbrar mais do que uma ténue luz vinda de fora. Suficiente, no entanto, para ver que algo brilhava no cimo de um monte de lixo no canto oposto da casota. E foi ver o que era...
Mal sabia ele que o António passava nesse preciso instante em frente ao recinto dos patos. Ainda espreitou para dentro, mas pensou que nenhum dos seus amigos fosse suficientemente tonto para se ir esconder lá dentro. E prosseguiu, aproximando-se cada vez mais da casa-de-banho do parque.
- Bem, lá dentro já me parece mais provável que algum se tenha ido esconder, pensou para com os seus botões. E resolveu ir dar uma espreitadela. Os dois rapazes que estavam escondidos no interior, estavam em pulgas. Tinham-no visto aproximar-se e sabiam que estavam em risco de serem descobertos. Estavam trancados dentro de um dos pequenos compartimentos. Seria o esconderijo perfeito, não fosse por um pequeno pormenor. A porta tinha uma grande fisga através da qual era possível a quem estivesse do lado de fora ver a parte de baixo do seu interior. E dois pares de ténis último modelo como os que o Paulo e o Vasco tinham comprado recentemente, não havia muitos por aí.
O António sorriu e perguntou:
- Está alguém aí dentro?
Ninguém respondeu. Mas os dois estavam cada vez mais agitados e, da segunda vez que a pergunta veio, acompanhada por batidas insistentes na porta, foi a gargalhada geral.
- Apanhei-vos, exclamou o António. E desatou a correr na direcção da árvore. Com o tempo que perderam a destrancar e abrir a porta, não tinham hipóteses nenhumas de chegar primeiro. E ficaram fora do jogo também. Só já faltava encontrar o Miguel.
- Mas onde se escondeu o Miguel, comentou o António com os outros. Já dei duas vezes a volta ao lago, espreitei em todo o lugar e nem vivalma.
- Às tantas, foi-se embora, disse um.
- Ele não fazia isso, disse logo o primo.
- Bom, mas então está muito bem escondido, replicou outro.
E resolveram todos ir procurá-lo.
Mas vamos voltar um pouco atrás na história. Lembram-se do que estava a fazer o Miguel quando o António passou em frente desta, sem desconfiar de nada?
O Miguel esticou a mão o mais que podia, tacteando o espaço em redor. Lentamente, sentiu uma superfície áspera primeiro, suave depois.
Parece papel, pensou. Tocou novamente e confirmou as suspeitas. Só pode ser papel. Mais confiante, pegou na estranha forma de papel e, aproximando-a de si, examinou-a com mais atenção.
Mas isto é um aviãozinho de papel. Que estará fazendo aqui dentro, pensou. E chegou-se um pouco mais à entrada, para ver um pouco melhor.
É mesmo um aviãozinho de papel. Amarelo nas asas, corpo e cauda de um azul-celeste que quase encandeava o olhar. Muito vistoso. Lindo de morrer. Será que voaria? E pensou que para experimentar, teria de ser em frente ao lago, onde havia espaço suficiente. Mas aí corria o risco de ser descoberto.
- Vou arriscar, decidiu resoluto. Também já estou aqui faz tanto tempo, que se deve estar a fazer tarde.
Primeiro, surgiu uma cabeça do lado de fora da casota. Depois, um braço. Depois, outro braço. No outro extremo do lago, os seus amigos procuravam-no em conjunto.
- Miguel, aparece. Temos de ir embora que se está a fazer tarde.
E de facto assim era. O sol já baixava no horizonte e não tardaria a ser completamente de noite.
Ao sair da casota dos patos, de novo a mesma algazarra. Agitados, estes batiam as asas, levantando poeira e penas, e afastavam-se à medida que o Miguel caminhava. A confusão foi tanta que dificilmente passaria despercebida aos seus amigos. E assim foi.
- Lá está ele! Junto à vedação dos patos! - exclamou o Vasco.
- Que anda ele a fazer lá dentro?, comentou o Paulo.
- Então era ali que ele estava escondido, replicou o Vasco novamente.
- Mas que grande tonto, rematou o António. E caminharam todos na sua direcção.
- Até que enfim, Miguel. Estamos fartos de andar à tua procura, disse o António.O jogo acabou, vamos embora para casa, acrescentou.
O Ângelo ofereceu ajuda ao primo para saltar a vedação, mas ele recusou. Ao saltar a vedação, todos viram algo que brilhava na sua mão, ao toque dos últimos raios de sol do dia.
- O que é isso que tens aí?, perguntaram todos em atropelo.
- É um aviãozinho de papel. Encontrei-o ali dentro da casota, respondeu ele.
- Já experimentaste a ver se voava?, perguntou um dos amigos.
-Ainda não tive tempo, mas se todos estiverem de acordo, vamos ali para a beira do lago ver que tal ele voa e depois vamos então para casa.
O aviãozinho de papel azul e amarelo não estava nada amachucado. As probabilidades de voar ao menos alguns metros eram bastante boas. As asas eram curtas, como as dos modernos jactos que cruzavam os céus em loucas correrias, e a cauda, que parecia um tanto ou quanto desengonçada, proporcionava um equilíbrio aerodinâmico perfeito. E era leve. Tão leve como a mais leve das penas que ainda esvoaçavam dentro do recinto dos patos.
- Cheguem-se para trás, vou lançá-lo. Vamos lá a ver que tal se comporta, disse o Miguel.
E, com um forte movimento da sua mão direita, impulsionou o aviãozinho de papel para a frente e para cima.
E o aviãozinho voou. Primeiro, em frente uns metros e subindo um pouco. O vento que ondulava ligeiramente as copas das árvores, fê-lo descrever um arco e, em seguida, atravessar o lago.
- Ora, vai cair no meio do lago, disseram o António e o Paulo ao mesmo tempo.
- Talvez não, replicou o Miguel. O aviãozinho é mesmo muito leve e eu lançei-o com toda a força que tinha. E pode ser que o vento dê uma ajudazinha, acrescentou.
Ao chegar a meio do lago, todos julgaram que o aviãozinho de papel iria desistir do seu vôo e cair das alturas, despenhando-se no lago.
Mas parecia que algo ou alguém estava do lado do aviãozinho azul e amarelo. Uma súbita rajada de vento fê-lo ganhar novamente altura e prosseguir em frente. Mais à sua frente, já novo obstáculo se aproximava. A copa de duas árvores parecia agora ser onde o heróico vôo iria terminar. Vôo esse, que, de resto, já excedera as expectativas de todos. Mesmo no último instante, e quando o final já se adivinhava, nova rajada de vento fê-lo guinar subitamente para longe da copa das árvores.
Por esta altura, já era difícil seguir o aviãozinho de papel com o olhar. Ainda tentaram segui-lo a pé durante algum tempo, mas quando este se começou a afastar cada vez mais, tiveram de dar a perseguição por finda.
Todos retiveram um brilhozinho no olhar, quando, após mais uma mudança de direcção do vento, o aviãozinho de papel azul e amarelo, reflectiu a luz do sol uma última vez, sumindo-se em seguida, por trás de uns prédios.
- Aposto que vai voar até à China, disse logo o Vasco.
- Pois eu acho que só vai parar no Japão e vai ser para atestar o depósito, gracejou o Paulo.
- Nunca tinha visto nada assim, parecia mesmo que era um pássaro e estava vivo, acrescentou ainda o Ângelo.
E foram todos para casa, discutindo o tempo todo sobre onde terminaria a épica viagem. Em todos a sensação que aquele aviãozinho de papel azul e amarelo era tudo menos vulgar.
Seria mágico? Estaria possuído pelo espírito de algum antigo aviador? E aquele estranho brilho, que mesmo com a chegada do anoitecer, teimava em dar alento a quem olhasse para ele, que estranho brilho seria? Era tudo muito, mesmo muito estranho.
Nessa noite, todos sonharam com o aviãozinho de papel azul e amarelo. Tiveram com ele as mais mirabolantes aventuras, voando por selvas desconhecidas, cruzando mares de uma imensidão nunca vista, planando sobre montanhas longínquas, sempre atravessando novas terras a cada passagem.
O Miguel, também sonhou. Cansado como estava das peripécias do dia, foi-se logo deitar após o jantar. A janela aberta, trazia uma brisa fresca que o fazia sonhar ainda desperto.
Mergulhou no Vale dos Lençóis e, antes de fechar os olhos deu uma última mirada para fora da janela, suspirando.
Era capaz de jurar que, por instantes, vira algo brilhar no firmamento. Uma estrela cadente, provavelmente. Não havia forma de saber. Ou seria outra coisa qualquer. Talvez sim... talvez não.... no coração, a secreta esperança que fosse o aviãozinho de papel azul e amarelo que lançara ao ar nessa tarde, continuando a sua viagem, sabe-se lá até que paragens distantes... e sorriu, adormecendo em seguida.

Autor: Pedro Luís Laima Bicho. 07-11-07