Era uma vez uma floresta que ficava longe, muito longe, nos confins do mundo. Tão longe ficava, que se contavam pelos dedos das mãos os homens que já a tinham visitado. Era uma floresta mágica.
Nessa manhã de Domingo, o Rafael decidiu acompanhar o pai. O pai era caçador e todos os Domingos ia caçar nas redondezas. É certo que quase nunca apanhava nada, mas o pai, que se chamava Miguel, gostava imenso dos seus passeios matinais. Domingo que não fosse caçar, não era Domingo.
Pois nesse Domingo, o pai não iria sozinho. O Rafael queria ver em primeira mão porque é que o pai gostava tanto de ir caçar aos Domingos. Ele nunca falava sobre as suas caçadas e isso despertava-lhe imenso a curiosidade. Raramente trazia caça para casa, pelo que devia ser um péssimo caçador. Que estranhas aventuras teria o pai para contar? Bem, certo, certo, era que o próximo dia já lhe cheirava a aventura. Mal podia esperar pelo dia seguinte.
Na véspera já perguntara ao pai se o podia acompanhar. Este, estranhara inicialmente o desejo do filho, pois era hábito do Rafael passar sempre as manhãs de Domingo na cama, mas lá acedeu, após muita insistência do filho e combinaram pôr o despertador para as seis da manhã do dia seguinte. O Rafael nem se queixou da hora, tal era a sua sede de aventuras.
À hora marcada, o despertador tocou: TRIIMM!TRIIMM!
Saiu disparado da cama que nem uma seta. Vestiu-se num ápice, foi à casa-de-banho e ainda não tinham passado cinco minutos, já se ouvia o bater da sua mão na porta do quarto dos pais.
- Tem calma, Rafael. Ainda não estou pronto. Espera mais um minutinho. E não faças tanto barulho, olha que acordas a tua mãe, acrescentou ainda.
- Vá lá, pai. Está a fazer-se tarde, retorquiu o Rafael.
Alguns minutos se passaram e finalmente o pai saiu do quarto. Por essa altura, já o Rafael ardia de impaciência.
Pequeno-almoço tomado e fizeram-se à estrada. O pai costumava ir caçar para uma floresta a cerca de 20 kms de distância da cidade. Era uma floresta muito antiga, atravessada por um rio de águas impetuosas e com várias montanhas que se espalhavam pelo horizonte numa e outra direcção. Várias árvores eram tão altas, tão altas, que nem se via bem onde terminavam.
Mais ou menos a meio do caminho, sairam da estrada principal e enfiaram por um caminho de terra batida. Lá fora, já se ouvia o chilrear dos pássaros à distância, só entrecortado pelo barulho que o carro fazia ao se deslocar, tantos eram os buracos que existiam na estrada. Cada um deles provocava um solavanco no carro e um sorriso no Rafael, que parecia imensamente divertido com a situação. Só o pai se ia lamentando pelo caminho do estado lastimável em que a estrada se encontrava.
- Ainda falta muito para chegarmos?, perguntou.
- Não, filho. É já ali à frente. Tivemos sorte com o dia, não?
- Pois foi. Que rico dia de sol. Adoro quando o céu está assim azul, azul.
- Olha, já chegámos. Vou estacionar ali, debaixo daquela árvore.
O carro ficou debaixo de uma árvore frondosa, num local em que a estrada alargava e formava uma espécie de largo. O Rafael estava deslumbrado com a paisagem. Ao sair do carro, a empatia foi instantânea. A explosão de verde em redor e os sons característicos que se ouvem em qualquer floresta digna desse nome, inebriaram-no de imediato.
Prosseguiram pela margem do rio durante algum tempo, rindo e conversando sobre as famosas caçadas do seu pai, em que chegava sempre a casa de mãos a abanar, quando de repente o pai parou, de súbito e lhe disse para não fazer barulho.
- Pára, Rafael. Vi uns juncos a mexerem-se além na curva do rio.
- O que é, pai?
- Shiuuuu!! Silêncio. Fica aqui.
E, passo a passo, prosseguiu em frente, tentando fazer o menor ruído possível. Ao aproximar-se, de novo viu os juncos agitarem-se. Avistou algumas sombras movimentando-se entre a vegetação. Não tardou muito, ouviu um inconfundível quá-quá e, num murmúrio quase imperceptível, falou para com o seus botões:
- Temos pato para o jantar!
Estava agora a apenas 20 metros de distância. Lentamente, muito lentamente, começou a levantar a carabina. Apoiou a coronha no ombro e apontou a mira para o meio dos juncos.
Três tiros ressoaram no ar, uns a seguir aos outros, interrompendo a calma da floresta: PUM! PUM! PUM!
Esperem lá...e o seu filho Rafael, que será feito dele?
Voltemos um pouco atrás na história, quando o pai o deixou sozinho.
Julgam que ele ficou escondido e em silêncio como o pai pedira?
Nem pensar! Era muito irrequieto para ficar no mesmo lugar muito tempo. Ademais, havia toda uma floresta para explorar. E muitas aventuras para viver, que o dia ainda mal tinha começado.
Se não podia seguir em frente, para não assustar a caça, nem fazer zangar o pai Miguel, então iria ao longo da margem do rio, mas no sentido oposto. Era impossível perder-se e, mais a mais, sabia onde o carro estava estacionado.
Decisão tomada, pôs-se a caminho. Nem dois minutos tinham passado, quando estremeceu todo ao ouvir três disparos, uns a seguir aos outros. Era o pai. Teria morto algo?
No seu intímo, desejava que não. Não era lá muito justo com as armas de fogo. Os animais praticamente não tinham hipóteses nenhumas. Bem, mas com a pontaria do pai, não tinha que se preocupar muito com a sorte dos pobres animais.
Mais valia não atrapalhar a sua caçada, para depois não se desculpar caso falhasse, com ele. E continuou a andar junto à margem do rio.
Não tardou, viu uns corços que tinham vindo matar a sede ao rio.
Dois eram fêmeas e um era macho. Tinha a certeza que era assim porque tinha lido algures que os veados machos tinham longas hastes, ao contrário das fêmeas. E o corpo era um pouco maior. Infelizmente, assustaram-se quando de repente o Rafael pisou um galho seco e em segundos desapareceram no meio da floresta, deixando-o profundamente descontente com a falta de cuidado.
À medida que caminhava, ia olhando para a esquerda e para a direita, reagindo a cada nova descoberta com um brado de espanto e admiração. Tudo era novidade. E de uma beleza que nunca imaginara ser possível.
Duas lontras que brincavam numa das margens cativaram-lhe o olhar. Parou, como que suspenso no ar. Escondeu-se atrás de uma árvore e ficou a observá-las. Uma tinha acabado de pescar uma truta e havia outra que lha tentava tirar. Ora puxava uma, ora puxava a outra. Tanto puxaram pelo peixe, que a truta ficou desfeita em duas e cada qual chegou-se a seu canto para comer o seu quinhão do petisco.
- Nunca tinha visto lontras ao vivo, só na televisão. É muito diferente ver como os animais são na realidade, pensou. Ainda bem que vim, não tem comparação nenhuma. E seguiu em frente.
Mais à frente, um guarda-rios pousado num ramo seco junto à água, fê-lo perder o fôlego. De bico fino e alongado, parecia um rei sentado no seu trono. O dono daquela parte do rio. A sua plumagem era magnífica, em tons de verde e azul, púrpura e amarelo. Todas as cores do arco-irís pareciam estar presentes, mas a esta distância era-lhe difícil afirmar com toda a certeza.
Um pouco mais à frente, na curva do rio, avistou uma cascata. Já à algum tempo que vinha ouvindo o som da água quebrando-se no rio e perguntava-se sobre o que conseguiria fazer um estrondo tão grande. A resposta? Uma cascata enorme, como descobriu em seguida. Um outro braço de rio terminava abruptamente numa das montanhas vizinhas, e, sem poder seguir em frente, despenhava-se no vazio, caindo pela montanha abaixo, vindo encontrar na sua base, o rio ao longo de cujas margens caminhava, cobrindo tudo com incontáveis salpicos.
Aproximou-se da cascata, que por sorte, estava do mesmo lado em que caminhava. E começou a levar com os salpicos de água no rosto e no corpo. Pareciam esvoaçar no ar, por toda a parte, como borboletas transparentes. Primeiro apenas alguns, mas, à medida que se aproximava mais e mais, tornaram-se tantos, que por momentos pensou mesmo que começara a chover. Olhando para trás, confirmou que não. O sol ainda estava lá. O céu azul, lindo de morrer, por sinal, também. E um pequeno arco-íris suspenso no meio do ar que o fez suster a respiração.
- Que lindo!
A curiosidade que ele tinha para dar e vender, começou a funcionar. Por brincadeira, estendeu uma mão sobre aquela massa de água toda que caía lá do alto. Já estava praticamente todo molhado dos salpicos, pelo que não fazia grande diferença.
Além do mais, a caminhada provocara-lhe sede.
Provavelmente de tanto esbracejar e brincar com a água, que lhe ensopava agora as roupas e a alma, não é que o Rafael acabou mesmo por se desequilibrar e cair ao rio?
- SPLAAASH!, fez o seu corpo com grande alarido, estatelando-se na água. O que lhe valeu foi ser bom nadador. Ainda se engasgou e engoliu uns pirulitos de água, mas com maior ou menor dificuldade, lá conseguiu alcançar um local onde tivesse pé e foi, com grande alívio, mas ainda um pouco titubeante, que se içou, ainda a medo, para uma das margens do rio.
Mas algo estava diferente. Agora estava do lado de dentro da cascata. Estava muito mais escuro do lado em que estava agora. E mais húmido ainda do que lá fora, se é que tal coisa era possível.
- Mau, pensou.
- Querem ver que tenho que me meter outra vez dentro de água para sair? Vou ver se dá para ir em frente, pode ser que dê para dar a volta pelo outro lado. E, resolutamente, deu dois passos em frente e começou a caminhar na direcção de um pequeno raio de luz que surgia no meio da escuridão.
Ao se aproximar da saída, percebeu que devia estar no interior de uma caverna, com duas entradas. Uma era aquela pela qual tinha entrado, oculta pela queda de água. A outra, aquela pela qual iria sair dentro de instantes.
- Oxalá a saída vá ter à outra margem do rio, murmurou baixinho.
- Assim que se viu novamente no exterior, a custo manteve os olhos abertos. A escuridão da caverna fê-lo levar algum tempo a habituar de novo os olhos à luz do dia, e ia piscando e esfregando os olhos, enquanto caminhava, num passo ainda inseguro.
- Que estranho, pensou. Não vejo o rio em lado nenhum. Mas onde vim eu parar?
Um pouco aborrecido consigo mesmo por ter caído ao rio, atirou palavras soltas ao ar, tentando-se consolar:
- Bolas, que grande azar!
- Que chatice!
- Arranjo que ainda me constipo, só me faltava mesmo isso.
- Parecia que estava mesmo a adivinhar o futuro. E deu um valente espirro, que abanou até as folhas das árvores mais próximas. AAATCHIM! E depois outro, e outro. ATCHIM! ATCHIM!
Qual não foi o seu espanto quando um esquilo que o observava atentamente desde que saíra da caverna, lhe respondeu do alto de uma árvore:
- Santinho.
Ao princípio, nem acreditou. Julgou que fosse o vento a agitar os ramos das árvores, ou a sua fértil imaginação.
- Santinho, repetiu o esquilo.
Ficou boquiaberto. Agora estava de olho no esquilo e viu os lábios dele mexerem-se. As orelhas espetadas para cima, olhava para ele fixamente, de forma um pouco estranha.
- Santinho, meu amigo. Deves estar perdido. O que fazes por estas paragens? É muito raro ver humanos por estas bandas.
Ainda mal refeito do susto, as palavras saiam-lhe a custo:
- Mas, tu falas? Que raios...?!!!
- Por certo que sim. Porquê, tens água nos ouvidos e ainda não ouves bem?
- Mas os esquilos não falam.
- Tsss, tsss. Deves ter batido com a cabeça numa pedra também.
- Mas como é que tu falas? Nunca tinha ouvido falar de um esquilo que conseguisse falar. Os animais não falam!!!
- Pois deixa-me dizer-te que neste lado da floresta, todo o animal que se preze gosta de dar dois dedos de conversa ao vizinho. Menos os que ainda são bébés para falar, claro.
- Claro, respondeu o incrédulo Rafael.
- Olha, vou-te deixar descobrir por ti próprio. Tenho que continuar a apanhar bolotas, pois o Inverno está aí à porta.
- Então adeus e obrigado pela ajuda, e com isto, concluiu o Rafael a conversa, continuando a tentar encontrar o caminho de regresso. Como a fome já fazia um nozinho na sua barriga, foi depenicando bagas dos arbustos que ia encontrando pelo caminho, engolindo-as de um trago. Amoras e framboesas, que delícia. Sabia que não eram venenosas, e comeu-as à vontade. Não era uma refeição a sério, mas eram muito saborosas e matavam a fome.
E continuou a caminhar. As árvores aqui eram um pouco menos altas, mas mais frondosas. Era impossível descortinar o que se passava entre a folhagem. A roupa entretanto começara a secar, mas ainda pesava bastante e pingava a cada passada que dava. Distraído com as roupas, que ia espremendo uma e outra vez, e com os animais com que se ia deparando no seu caminho, nem reparou que por entre a folhagem de uma dessas árvores, dois olhos brilhantes cor de opala o espreitavam, havia vários minutos.
De repente, uma enorme e sibilante pitão castanha lançou-se sobre si, apanhando-o completamente desprevenido. O Rafael entrou em pânico, mas ainda conseguiu ter sangue-frio para gritar SOCOOOORRO! o mais alto que pôde, antes de ser completamente envolvido num abraço mortal pela ameaçadora pitão. Vários animais da floresta que se encontravam na vizinhança ouviram o seu apelo e acorreram prontamente. Os primeiros a chegar foram várias aves de diferentes formas e tamanhos. Assim que viram a aflição em que o Rafael se encontrava, não pensaram duas vezes e começaram logo a dar bicadas e mais bicadas na cobra. Contudo, as bicadas, apesar de dolorosas, não foram suficientes para a cobra libertar o Rafael. Ele debatia-se como podia, o problema era que a cobra era forte demais para ele. Ao menos, o círculo de anéis que o envolvia era agora menos forte e ele conseguia respirar. A custo, mas conseguia. A cobra malvada é que não havia forma de o libertar.
Alguns lobos, que não gostavam nada, mesmo nada de cobras, entraram então em cena dispostos a ajudar. Uns atrás dos outros, surgiram do meio das árvores, como que num passe de mágica, saltando e arreganhando os dentes, com rosnados ameaçadores. A cobra pressentiu o perigo. O ajuntamento de animais era-lhe agora desfavorável e viu que não iria conseguir levar a sua adiante. Mais a mais, os dentes afiados dos lobos podiam provocar-lhe ferimentos sérios. Assim que sentiu o afrouxar dos anéis castanho brilhantes, deu um soco na cabeça da cobra com o resto de forças que ainda tinha. Para a cobra, foi a última gota de água. Lentamente, pois as cobras não se movimentam depressa, foi-se retirando do local, com o máximo de dignidade, que tentava aparentar. Foi vaiada e mandada embora num coro de assobios.
Os humanos que já tinham visitado aquela parte da floresta contavam-se pelos dedos das mãos e eram protegidos a todo o custo. Na conversa que se seguiu na clareira improvisada, os animais presentes contaram que há muito, muito tempo atrás, um humano chamado Jonas se tinha perdido, entrara naquela parte recôndita da floresta pela mesma caverna por onde ele entrara e com eles vivera até ao final dos seus dias. Nunca quis voltar para o meio dos outros humanos, pois ali era feliz. E durante os anos em que todos os animais conviveram com ele, o Jonas, de alguma forma mágica e secreta que se perdeu com o tempo, conseguiu transmitir a língua que falava, aos animais seus amigos com que partilhava a floresta e a quem ajudava, sempre que podia. Depois de morrer, os animais daquela parte da floresta fizeram uma reunião e decidiram perpetuar a memória do Jonas para sempre, falando a língua que este lhes ensinara e ensinando-a aos animaizinhos que entretanto iam nascendo e crescendo. Por esse motivo, todos ali sabiam falar muito bem. Com distinção, aliás. Alguns poderiam certamente envergonhar muitos humanos, se algum dia alguém se lembrasse de fazer um debate entre humanos e animais.
O Rafael escutou a explicação deliciado. Entendia agora o porquê do esquilo que encontrara antes, falar tão bem. Estranhava muito que assim fosse, é certo, mas muitas coisas são tão estranhas que não se deve tentar entender como acontecem, mas antes aceitá-las tal como elas se nos apresentam. Contra factos, não há argumentos. E era um facto que os animais falavam, quanto a isso não havia dúvidas.
- Gostaria só de deixar algumas palavras de agradecimento a todos. Muito obrigado por me terem salvo a vida. Sem a vossa ajuda, não estaria aqui a esta hora. Adorava ficar mais tempo com vocês, mas o tempo voa. Tenho que voltar para junto do meu pai que já deve andar aflitíssimo à minha procura. Está-se a fazer tarde e daqui a nada, é de noite.
Ao contrário do que acontecera à cobra, a despedida foi alegre, com muitos HURRAS! E VIVAS! à mistura e, no coração, o Rafael levava a gratidão eterna dos animais que o haviam salvo e dos quais nunca mais se iria esquecer. Tão contente estava com a despedida, que se esqueceu por completo de perguntar por que lado deveria seguir para voltar para junto do pai.
Um pouco mais adiante, encontrou uma águia que voava altaneira, em círculos, e lançava piares aflitos que se propagavam na vastidão do ar, como se qualquer coisa não estivesse bem.
- Será que também fala?, pensou. E se bem o pensou, melhor o disse.
- Passa-se alguma coisa, senhora águia?
A águia, castanha e muito elegante, deu ainda uma volta nos ceús, antes de lhe responder.
- Ai, meu Deus! Que hei-de fazer à minha vida? Fui caçar e quando voltei não encontrei o meu filhote no ninho. Não tarda o sol esconde-se atrás da montanha e se não o encontro, ele não sobrevive à noite.
- Terá caido do ninho?, perguntou o Rafael.
- Pode estar escondido nalgum recanto perto da árvore onde o ninho está.
- Não sei. Daqui do alto já procurei e procurei pelos arredores com a minha visão de águia, que é muito boa, mas não o consigo encontrar em lado nenhum. Será que me podes ajudar, jovem humano?
- Bem, estou com um bocado de pressa, mas posso tentar. Aqui em baixo dá para procurar em sítios que tu não consegues avistar daí de cima.
E começou a busca. Primeiro, procurou debaixo da árvore onde o ninho se encontrava. Procurou na vegetação rasteira, no meio dos arbustos, entre as pedras, mas nada. A alguma distância olhou então para um tronco caído, que apodrecia lentamente no solo da floresta. Era oco num dos lados.
Aproximou-se e espreitou lá para dentro. Não conseguia ver nada, mas teve a sensação que algum animal se ocultava no seu interior. Talvez o filhote de águia. E esticou a mão o mais que pôde para o seu o interior, tacteando com a ponta dos dedos pelo tronco, à medida que estes avançavam mais e mais para dentro. A dada altura, sentiu algo. Um monte fofo de penas comprimia-se agora contra a extremidade dos seus dedos. Estendendo um pouco mais a mão, sentiu um bico, acompanhado agora de um insistente piar aflito.
Só pode ser o filhote de águia. Deve ter caído e escondeu-se aqui, onde era mais seguro. Foi uma sorte ainda não ter aparecido nenhum animal perigoso que lhe fizesse mal. Foi uma grande sorte. E puxou-o como pôde para fora, aninhando-o junto ao seu peito, com palavras reconfortantes.
- Está tudo bem, pequena aguiazinha. Estás salva, e em breve estarás junta da tua mãe.
E chamou a águia, que acompanhara a busca e entretanto pousara num ramo próximo.
- Veja só o que eu tenho aqui para si, senhora águia.
- Oh, o meu precioso filhote! Graças a Deus! Como te posso agradecer, meu jovem e bondoso humano?
- O seu agradecimento é suficiente, não precisa oferecer-me nada. Porém, como me encontro perdido e já é tarde, se me conseguisse dizer que direcção tenho que tomar para reencontrar o meu pai, agradecia imenso. Quando o deixei esta manhã, ele caçava junto ao rio, do outro lado desta montanha. Depois de cair à água, atravessei a caverna escondida pela cascata, começei a andar em frente e agora já não sei o caminho para voltar. Só me apetece chorar. Está-se a fazer tarde e o meu pai deve estar muito, muito preocupado por eu ter desaparecido assim.
- Sim, meu jovem humano. Esta parte da floresta é muito difícil de ser alcançada... e mais ainda de ser abandonada. Mas como me ajudaste a encontrar o meu filhote, eu vou-te ajudar. A tua boa acção merece uma recompensa.
- Segue em frente até encontrares uma pedra branca mais ou menos do teu tamanho. Do teu lado esquerdo vais ver três carvalhos enormes. Depois de passares por eles, vais encontrar um caminho de terra batida, que é utilizado por todos os animais para irem beber água ao rio. Segue por essa vereda adiante e encontrarás a caverna e o caminho de regresso para junto do teu pai.
- Muito obrigado, senhora águia. Vou partir sem demora. Já vejo o sol a pôr-se no horizonte. Mais uma vez, muito obrigado pela sua ajuda.
- Ora essa, eu é que agradeço. Foi um prazer ter-te conhecido, jovem humano. Vai sem demora, pois se é assim como dizes, o teu pai deve estar ralado de preocupação a esta hora e sem saber que fazer.
O Rafael seguiu as instruções da águia e, em três tempos, encontrou-se novamente defronte da caverna. Uns coelhos que já tinham sido postos a par das suas peripécias por ali, foram os últimos animais falantes com que esteve, nesse dia mágico.
- Adeus, adeus!, gritaram todos. Regressa rápido para junto do teu pai e não te esqueças....
- Não contes a ninguém que nós sabemos falar, nem a entrada para esta parte da floresta.
- Claro que não, coelhinhos. Podem ficar descansados. Aliás, também acho que ninguém iria acreditar em mim. Eu próprio às vezes ainda me belisco para confirmar se isto tudo está de facto a acontecer e se vocês são todos reais.
Ao passar outra vez pela cascata, o Rafael lá teve de apanhar mais um rico banho para passar para o outro lado, mas desta vez até nem se importou muito. Quase em passo de corrida, seguiu pela margem do rio até onde o pai tinha estacionado o carro.
Mas, esperem lá. E o pai do Rafael?
Passámos a história toda a ver o que andava o Rafael a fazer e esquecemo-nos por completo de seu pai. Pois o pai Miguel teve um dia para esquecer. Não tinha caçado nada, o que até era hábito. Não era grande caçador, como já se disse atrás. Vinha mais para o contacto com a natureza, a adrenalina de perseguir a caça, fazer algum exercício e abater a barriga e para os seus almoços domingueiros no meio do mato com o farnel preparado pela esposa. Sim, isso era o principal. Queria lá saber se matava patos, coelhos ou outros animais.
Às vezes a esposa preparava-lhe os seus pitéus favoritos no dia seguinte, quando não apanhava nada. Às vezes até fazia de propósito para não levar nada, só para se deliciar com essas iguarias que eram de comer e chorar por mais.
Pois não ter apanhado nada, era a menor das preocupações do pai do Rafael. Se já pensava no jantar, era pelo adiantado da hora.
Passara grande parte do dia subindo e descendo o rio, num e noutro sentido, gritando o seu nome:
- RAFAEL! RAFAEL! ONDE ESTÁS?
E do Rafael, nada. Com a aflição, nem tinha disparado mais. Imaginou que o filho pudesse ter caído e estar ferido em qualquer parte, ou ter caído ao rio. Custava-lhe ainda pensar que algo de ruim pudesse ter acontecido ao filho. A sede de aventura é típica dos jovens da idade dele e o Rafael era muito, muito aventureiro. E imprudente. Talvez se tivesse afastado demais para explorar os arredores e não soubesse o caminho de volta. Por isso, enquanto o dia não chegasse ao fim, ia continuar a chamar por ele e a procurá-lo junto à margem do rio.
O problema é que o dia ia quase no fim e o seu filho teimava em não aparecer. Devia andar morto de fome, o farnel feito pela mãe nem saíra da sacola que trazia pendurada no ombro. Morto de fome como ele, de resto. O apetite fora-se todo com o desaparecimento do filho e tembém nem tinha almoçado.
Um pouco afastado da margem do rio, procurava pelo Rafael, incessantemente e cada vez mais aflito:
- RAFAEL, APARECE! RAFAEL!
E o Rafael apareceu. Finalmente.
- Estou aqui, pai. Está tudo bem, disse, ainda ofegante.
- Por onde andaste, filho? Estava morto de preocupação por não saber nada de ti.
- Está tudo bem contigo, filho?, perguntou com a voz um pouco embargada pela emoção.
- Sim, pai. Está tudo bem, repetiu.
- Mas tu estás todo molhado. O que é que se passou?
- Ah, é uma longa história. Caí ao rio, mas não me magoei. Eu prometo que depois conto.
- Nunca mais desapareças assim sem dizer nada. Se soubesses como eu passei o dia. Nem comi, filho.
- Desculpa, pai. Foi sem pensar. Prometo que nunca mais se torna a repetir.
E abraçaram-se, os dois, um pouco comovidos pelo reencontro. Um longo e forte abraço aos primeiros raios de luar. Por testemunha, um mocho que piava a espaços, anunciando a todos que a noite finalmente chegara.
- Vamos para casa, Rafael. O apetite regressou-me.
- Sim, estou cansadíssimo. A mim também, respondeu o Rafael.
- Vamos lá ver o que a nossa mãe preparou para o jantar.
No caminho para casa, o Rafael olhava repetidamente para trás pelo espelho do carro. Perdido nos seus pensamentos, pensou se tudo teria realmente acontecido. Ainda lhe custava a crer que semelhante coisa pudesse ser verdade. Animais falantes. Fosse como fosse, no futuro iria ter certamente mais respeito pelos animais. Já viram a confusão que era se de repente todos os animais desatassem a falar?
Em vez de uma floresta mágica, um mundo mágico onde todos vivessem felizes e em harmonia.
Sorriu deliciado com o pensamento, virou-se para trás e fez um último adeus à floresta mágica. Fora um dia inesquecível.